domingo, 19 de agosto de 2007

O Parkour por contraste (parte 1)

O desporto em geral tem uma função muito específica na sociedade. Entre outros, tem o papel de entreter os cidadãos, balanceando com uma descarga regular de emoções o acumular angustiante da vida de trabalho e obrigações que mantêm. Independentemente do significado que poderá dentro da sociedade o desporto e o Parkour, procuro distinguir aqui, de um ponto de vista mais particular, as diferenças conceptuais entre estas duas actividades, apontando algumas consequências no que toca à experiência de cada uma delas.

A meu ver, faz todo o sentido distinguir, realçar e separar o Parkour de todas as outras formas de actividade física que o Homem soube inventar e desenvolver até hoje. Estas actividades, segmento-as de uma forma lata, por questão de facilidade na exposição das ideias, salvaguardando, contudo, o valor que cada uma dessas actividades tem por si mesma. Desta forma, separo-as em jogos, desportos radicais, artes marciais e ginástica/atletismo.

Jogos

Desde que tem consciência de si que o homem vem criando formas de se entreter, de passar o tempo, desafios que, por alguma razão obscuramente explicada pela tendência para a sobrevivência que tem, lhe dão gozo superar. O gosto que, individualmente, o praticante de um desporto tem, é algo de muito diferente do gozo que a audiência tem em vê-lo praticar esse desporto. Se o primeiro é levado, quase de uma forma irracional, pelas emoções que a tarefa que tem perante ele lhe suscita, toda a mínima jigajoga que acontece dentro dele e que sente com prazer, a segunda é levada ao frenei dos aplausos ou dos apupos por uma qualquer sensação de admiração que esperam poder vir a sentir por quem joga, por quem se prostra diante dela, todos os caminhos que essa pessoa lhes permite percorrer através do simples facto de a verem fazer algo que a seus olhos parece, fantástico, deslumbrante e, por vezes, impossível.

Todas aquelas actividades que englobo na categoria de jogos têm um conjunto de características que, se por um lado lhes são próprias, por outro são requisitos necessários para que tal actividade seja tida como um desporto. Destas, vou-me referir exclusivamente às que não estão presentes no Parkour, de forma a procurar definir, por contraste, aquilo que se pode entender como Parkour.

A primeira destas é o objectivo. Todos os jogos são constituídos, na sua essência, pelo binómio objectivo/regras. Ao ser apresentado a alguém, é quase certo que aquilo que lhe for dito e aquilo que essa pessoa espera ouvir para poder “entender o jogo” é o objectivo a ser cumprido, ou seja, aquilo que ela tem que fazer para que a sua participação nele seja um sucesso.

A segunda destas características são as regras. Nestas, incluo todas as normas a serem seguidas ao se participar nesse jogo, tudo quanto se deve e não deve fazer, se pode e não pode, para que o pratiquemos correctamente. Numa palavra, todo o edifício jurídico que subjaz à sua prática. De uma maneira geral, são estas regras que dão gozo ao jogador, elas são a razão de ser de todo o jogo. De facto, a diversão é extraída do simples percurso que uma pessoa leva a atingir o objectivo desse jogo cumprindo as regras estipuladas. São elas que criam o desafio que nos dá tanto gozo superar ou ver superado. Elas variam consoante o objectivo a ser cumprido e, como tal, com o jogo em questão. Não as havendo, o resultado é fácil de verificar: pensemos apenas na possibilidade de se poder usar as mãos no futebol, um escadote no basket, ou puxar a rede no volley. O objectivo seria de imediato cumprido, sem dificuldade alguma e o jogo perderia todo o seu propósito. É talvez por isso que os melhores do mundo num determinado jogo, aqueles que apenas surgem de tempo a tempos, muito raramente ou nunca quebram as regras daquilo que dominam. Eles sabem bem no seu íntimo que o sentido de jogarem àquilo só está nas regras e no rigor com que são cumpridas, que esse é que é o desafio, não o atingir do objectivo simplesmente. Num jogo como o xadrez, tal questão nunca se coloca, mas num como o futebol, ela surge constantemente dado a leviandade com que as faltas, a quebra dessas regras, são cometidas.

A terceira é a interacção com objectos e locais específicos. Todos os jogos utilizam um ou mais objectos para construir um objectivo a ser cumprido e regras de regulação na utilização desse objecto. Retirando-se o objecto, ou privando os jogadores de um local com determinada característica (uma baliza, uma rede, etc), o jogo deixa de poder acontecer.

As consequências trazidas por estas três principais características dos jogos, no que toca à sua prática concreta, são o fechamento e a limitação da imaginação e capacidades do praticante a uma estrutura imóvel e rígida, cujo valor está na sua imutabilidade ao longo do tempo. É por isso que é muito fácil para nós imaginarmos o protótipo ideal do jogador de um qualquer jogo. Tem que ter a característica X, ser capaz de fazer Y, ser Z, e terá sucesso garantido. Tal é possível precisamente devido a toda a bagagem conceptual acabada, todo o vasto conjunto de modelos que a concepção de cada jogo traz consigo. Fazemos corresponder a cada item de tal concepção uma aptidão física ou psicológica e reunimos o “necessário” para alguém ser bom jogador. Eu chamo limitada a esta concepção porque, para qualquer jogo que haja, o praticante ideal nunca precisará de ter todas as aptidões e capacidades humanas desenvolvidas ao máximo. Para um basquetebolista, a capacidade de medir distâncias e adaptar a força dos dedos e dos braços ao lançamento de uma bola consoante as distâncias que mede são essenciais. Porém, não há necessidade alguma de desenvolver a capacidade de leitura descentralizada da movimentação em grupo que os jogos como o Rugby implicam. Ao nível físico, este aspecto torna-se ainda mais explícito. No limite, seria possível apontar tudo quanto impõe a prática perfeita do basquet. Seria uma lista grande, mas finita.

O prazer e utilidade que advêm da prática e visualização destes jogos têm muito a ver com a relação entre algo que tem que ser sempre permanente e fechado, a forma como se joga e a razão por que se joga, e tudo quanto, dentro dos limites impostos por cada estrutura em particular, pode acontecer de extraordinário, de incomum. É nessa dialéctica do que o que se espera com o que se sabe poder acontecer inesperadamente que o prazer surge. Se, num jogo de futebol, houver golos, sabe-se e espera-se que tal aconteça com a bola a entrar dentro da baliza. Porém, ainda que se possa antecipar muitas maneiras para isso acontecer, há muitas outras em que não pensámos e que são possíveis, e é seguramente à procura dessas que nos sentamos a ver o jogo, quanto mais imprevisíveis e inconcebíveis, melhor. Aplaudimos, por isso, aquele que for capaz de imaginar essa maneira incrível de, cumprindo as regras, atingir o objectivo do jogo utilizando os meios à sua disposição. A sua imaginação é fundamental para o seu sucesso, mas apenas enquanto estiver refreada pela estrutura do próprio jogo, enquanto esta lhe servir do molde. Assim, ela pode ser usada para qualquer coisa… desde que, no caso do futebol, não utilize as mãos, não haja agressão física ou verbal, não saia com a bola para fora das linhas, etc. fora todas essas limitações, a imaginação é livre, mas, devido a elas mesmas, torna-se limitada.

Independentemente das imensas possibilidades encerradas de diversão, entretenimento e prazer que um jogo encerre, ele está sempre sujeito ao seu carácter fechado que já referi. Assim tem que ser porque apenas assim é que ele tem piada. Desta forma, cada jogo transmite uma sensação de gozo única e específica desse mesmo jogo, e apenas a sua própria. A procura desenfreada de formas novas para nos encontrarmos com o que somos capazes de fazer e para nos divertirmos com isso, aliada à criatividade que nos define enquanto espécie, levou-nos a um sem número de descobertas e criações diferentes e variegadas, desde o futebol ao ténis, do golfe ao xadrez. Cada um encerra modelos e estruturas que permitem o desenvolvimento de faculdades específicas e exigem diversos tipos de talento. Cada um leva consigo obrigatoriamente as três características e tudo quanto elas implicam.

Fim da 1ª parte.

1 comentário:

Anónimo disse...

Por que nao:)