O propósito do presente blog é o de explorar, por qualquer meio e utilizando qualquer ferramenta, tudo o que implica e representa o Parkour na nossa vida e na forma como encaramos o mundo.
Talvez por demasiado querer ou uma intenção algo ansiosa, mas decerto também devido à falta de experiência, têm surgido dificuldades ao nível da inspiração e da estruturação das ideias que gostava de expor. Sobrepondo o seu peso ao destas razões, uma certeza, mais do que qualquer outra, tem dificultado o arranque dos passos iniciais deste percurso: a dúvida. Como um estado de espírito recorrente, e arrastando consigo um humor perturbador, o desamparo que uma forma de estar algo insegura, e muitas vezes pouco firme, provoca na minha relação com aquilo que sinto poder ser um dos maiores bens da vida, tem vindo a alojar num pântano de reticências alguns sonhos e aspirações que sinto em bruto poderem brotar da forte e completa presença do Parkour na vida de alguém. Faz, portanto, todo o sentido que exponha no blog um tópico sobre esta dúvida.
As causas associadas à tão forte presença de uma tão amarga disposição na minha vida são-me desconhecidas. Conhecida é a maneira como este sentimento vai e volta, como se afasta para de novo retornar, como se despede para, no momento seguinte, me cumprimentar de novo. Sei acerca dele que ganha a sua força junto daqueles elementos da minha vida que me são mais caros, engordando à custa dos receios que sinto pela vulnerabilidade de determinadas zonas privilegiadas da minha existência subjectiva. Parece ter, como condições para florescer, a envolvência da minha atenção e do meu interesse e a minha entrega emocional, de forma recorrente, ao longo de determinados períodos de tempo, com a consequente possibilidade de desgaste desse material de que são fabricadas as emoções sempre que tudo parece correr mal o que, no limite, me conduz a cinzentas situações de angústia. Um exemplo destas, relacionado com a vida de qualquer traceur, são aquelas situações em que me sinto não estar a evoluir como deveria, como se estivesse permanentemente a perder um comboio em que todos os outros traceurs já embarcaram há muito, ou aqueles finais de dia em que, finado o treino, sinto não ter conseguido ser forte o suficiente para dar o máximo.
Acho que sentir dúvidas em relação a algo é conceder a isso sobre que se sente dúvidas uma importância já por si relevante, de tal modo que nos sujeitamos, por isso, a colocarmo-nos na frágil situação de nos sentirmos mal sempre que algo corre inesperadamente mal. Sabemo-nos nesta situação, em relação a algo, quando nos ouvimos inconscientemente sussurrar a nós mesmos que gostamos tanto de algo ao ponto de não querermos nunca vir a sentir o mais pequeno amargo travo que nos traz a antecipação sobre a perda disso de que gostamos. Afinal, quem ainda não pensou em desistir de treinar? Quem não se perguntou ainda se foi feito para o Parkour?
Não sei por que mecanismos obscuros a minha consciência opera em mim esta relação com aquilo que aceita no seu círculo mais íntimo, mas sei ser muito viva esta sensação de dúvida fundada em temores e receios de perda e descontinuidade, capazes de me conduzirem amiúde a dias de solidão amarga e impotência, cuja origem, ironicamente, se encontra na força da entrega.
A dúvida, sinto-a em relação ao Parkour.
Sinto esta frase nua. Despida de qualquer pretensão, romantismo ou ironia, tal e qual como a lâmina que, forjada e afiada recentemente, corta despretensiosamente a carne. Aterroriza-me, com esta dúvida, a sensação latente de me querer apoiar no gosto que tenho por algo cuja importância na minha vida ainda não vislumbro totalmente e que, por isso, não consigo sentir como algo firme e seguro sobre que me apoie. Acorrentada a esta dúvida, porém, sinto a mais profunda certeza, de que, o que quer que seja o Parkour como ideia e qualquer que seja o peso da sua importância na minha vida, os caminhos por que me leva no pensamento e na imaginação são dignos do esforço de querer pô-los por escrito. Sei, porém, que tal tarefa apresenta-se não apenas hercúlea, mas, de certo modo, impossível de concluir. Resta-me tentá-la, e o resultado apresenta-se aqui.
Em relação a esta dúvida, descrevo-a como algo que seca, que chupa vitalidade, capaz de me pregar a uma cadeira, em frente a um computador ou televisão. Se a ideia de ir treinar aflora à consciência, ela apresenta logo de seguida todo um conjunto variegado de interesses e opções, alternativas ao esforço físico que o meu corpo pede para não sentir e encarrega a mente de garantir que assim não aconteça, como, a uma ferida aberta, procuramos com urgência imediata estancar o sangue com panos e pensos. Sinto-a prendendo-me os pés ao chão, reforçando a acção da gravidade sobre um corpo que progressivamente sinto mais absorto, ao ponto de me convencer a ficar em casa a ver um filme ou a ler um livro, repousando negligentemente pelos dias arrastados de uma semana preguiçosa. Esta dúvida, sobre se devo ou não ir treinar, se quero sair ou permanecer, se realmente devo mudar-me para o Parkour ou apenas visitá-lo esporadicamente, sinto crescer com a intromissão a que, de facto, vou dando azo à medida que me vou envolvendo mais e mais. Ela veio despertar uma querela interna entre duas atitudes perante as coisas da vida em geral, e o esforço físico em particular, que alternadamente se apossam da minha maneira de estar: Uma paixão e devoção juvenis e fogosas que vivem, em toda a sua pujança, num corpo jovem, originadas daquela postura adolescente para com a vida, caracterizada pela vivência intensiva e frenética das experiências, e toda a força acumulada e desperdiçada de uma apatia construída diariamente, uma apatia que poderia ser chamada de moderna, ligada a um estilo de vida recente, de não mais que 100 anos, que toma conta do nosso corpo e atitudes, tão subtilmente quanto o pó que assenta num livro que não se abre há muito tempo, deixado negligentemente entregue à companhia da solidão, numa velha estante de madeira escura num canto do nosso quarto.
Julgo que a dúvida que procuro apontar aqui é a forma como se manifesta, na minha consciência, este embate. Perante a necessidade de mudar que o Parkour cria e exige, com toda a eliminação de hábitos tão profundamente enraizados, aprendidos desde há muito por mim enquanto membro da sociedade onde estou, a resposta mais natural de todas foi a do miúdo que, pela primeira vez visita a praia. Excitado, corre freneticamente atravessando a areia escaldante em direcção à grande massa azul que, com uma única visão, o engole por inteiro. Deslumbrado, deixa-se entregar hipnotizado ante aquela visão de potente força da natureza, deixando-se guiar inconscientemente até à sua beira. Uma vez aí chegado, à medida que vê as pequenas ondas enrolarem e baterem no chão cada vez mais próximo de si, sente o seu ímpeto ceder, a pouco e pouco a energia consumindo-se em pequenos sustos e suspiros de receio. Gradualmente, o miúdo vai-se apercebendo da imensidade que aquela grande superfície azul encerra em si, de todos os pequenos mundos que dentro de si permite viver, da titânica presença de que é capaz, de quão alto o permite, a ele, subir. E cair. Então, numa disposição ambígua, aproxima-se da água fria e afasta-se de seguida, corre para ela soltando risadas de excitação e, tocando-lhe com o dedo do pé, retorna rapidamente para onde a terra é seca e parece firme. É nessa dança emocional de entrega e afastamento que vai dando os primeiros passos no conhecimento do que o rodeia e do significado daquele todo azul magnífico. Procurando projectar tal dança sobre a minha relação com o oceano em que queremos todos mergulhar, julgo que a existência de tão grande dúvida e receio em mergulhar de cabeça nas suas águas se deve ao tamanho que o fenómeno do Parkour pode ter na minha vida e, mais importante, à consciência que eu tenho dessa totalidade. Ao que ela implica. Sabê-lo é sentir um peso sobre os ombros, a responsabilidade de trabalhar para a construção de alguém que o Parkour me diz, por todas as suas letras, ser possível criar.
Sobre que totalidade é esta e como ela nos leva a encarar o Parkour como um verdadeiro Percurso, não cabe falar neste post. Ele só pode servir como apontamento e breve esboço desta dúvida de que falo. Serve para dizer que a sinto em mim quando penso no Parkour, e que isso é o mais fidedigno dos sinais de que este já entrou na minha vida.
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