Garagens. Com um cheiro a pó, o espaço é jogado pelas sombras, vestido de uma cor baça pelas entradas de luz irregulares. O ritmo é marcado pelo timbre metálico da sarjeta, pisada pelos carros que vão entrando e saindo, indiferentes à sagrada beatitude do local.
A abundância de percursos que as garagens permitem leva a que, recorrentemente, planos já traçados se entrecruzem entre si, intenções se sobreponham, mesmo necessidades físicas se alterem. A riqueza da sua configuração desperta uma vontade infantil para a brincadeira, e facilmente nos soltamos à maré do improviso. Talvez seja preciso um sítio como este para que um treino de braços se torne na experiência nova de um treino de cem precisões seguidas.
A ideia, nascida na crescente tradição, mantinha-se adormecida. Levado pela distância inocente dos dois lados de um muro, conduzido pela sua energia pétrea, o meu corpo repescou-a, despertou-a, e, na repetição dos seus gestos, na quase monotonia dos seus passos repetentes, fez-me ver que a tinha posto em prática.
“Se fizesse cem precisões?”, atrasado, perguntei-me.
Depois da consciência, chegaram os cálculos e as medições. Sete pés, palmo de grossura, de uma textura áspera, dificilmente escorregadia. Um conhecido, é certo. Uma. Duas. Três. Com uma meta traçada sucedem-se questões, dúvidas, avançam-se hipóteses. Há um apelo a uma certa determinação, porque parece que um pensamento nunca vem só. Quatro. Não chega fazer a precisão, há que ter cuidado com a fluidez, polir cada passo. Cinco. Um número tão grande permitirá isso mesmo. Seis. São três. Da aterragem, de um lado do muro, ao outro lado, de onde parte a sétima precisão, são três passos no mínimo. Sete. Oito. Nove. Pontas dos pés. Dez. Pontas dos pés. Onze. Mais na ponta ainda. Doze. Treze. Quanto mais na ponta, menos o barulho no impacto. Catorze. Quinze. Milímetros abaixo dos dedos dos pés, a precisão oscila o mínimo. Dezasseis. Quanto mais perpendicular ao muro chegar, mais progressivo o contacto da área do pé com o muro. Dezassete. O joelho direito sugere uma mudança de exercício. O pequenino estalinho remete-me para o aquecimento. Também para a postura do corpo todo na aterragem, exige uma distribuição mais equitativa da energia no momento do contacto com a pedra amarela. Dezoito. Melhor. Dezanove. Estalinho. Vinte. Assim ainda não, mais cuidado, mais postura. Vinte e Um. Isso. Vinte e Dois. Vinte e Três......Vinte e Quatro..........Vinte e Cinco................Vinte e Seis........................Vinte e Sete....................................Vinte e Oito. A passagem deve poder ser mais fluida, mais eficaz. Vinte e Nove. O mínimo de tempo possível, mas mantendo-me em cima do muro. Trinta.............Trinta e Um..........Trinta e Dois.....Trinta e Três. Mais de seguida, ainda. Trinta e Quatro...Trinta e Cinco. Trinta e Seis.Trinta e Sete.TrintaeOito.TrintaeNoveQuarenta.
Descanso.
Há um desvio da atenção do muro, um olhar em redor, turvo. A necessidade de regular a respiração e as gotas de suor que vão brotando um pouco por toda a pele são produtos do exercício, do que este muro de sete pés tem para dar. Parar, por instantes que sejam, desviar a atenção e pensar noutra coisa, é como uma lufada de ar fresco. Deixar o muro, o exercício, o movimento, absorver-nos totalmente desampara também. Pode ser asfixiante…
…faltam Sessenta. Quarenta e Um. Quarenta e Dois. Quarenta e Três. Quarenta e Quatro. A concentração parece como o mergulhar da mão numa terrina com água quente. O contraste é evidente ao início, enquanto a diferença entre as temperaturas é maior. Abandonando a mão inerte, o tempo equilibra essa diferença, e a percepção de calor esmorece progressivamente. Perde-se, por fim. É uma pequena oscilação, da mão ou da terrina, que torna a desequilibrar as quantidades de energia térmica, avivando a sensação de novo. Quarenta e Cinco. Quarenta e Seis. Quarenta e Sete. Como se os pensamentos fizessem a terrina oscilar. Quarenta e Oito. Quarenta e Nove. Cinquenta. Metade. Cinquenta e Um. E o grau de concentração, que nos vai aproximando de um instinto do movimento, se perdesse. Cinquenta e Dois. Cinquenta e Três. É como se, por um certo receio do puro instinto, de uma incontrolada inconsciência, pensamentos despoletassem automaticamente, por sobrevivência, segundo as regras aprendidas pela evolução. Cinquenta e Quatro. Cinquenta e Cinco. Mas automaticamente porque obedecendo a um instinto também, outro instinto, como espécies animais que somos. O inapelável instinto humano de sermos racionais. Cinquenta e Seis. Guerra civil de instintos. Cinquenta e Sete. Cinquenta e Oito. Cinquenta e Nove. Sessenta. Sessenta e Um. Sessenta e Dois. Sessenta e Três. Durante o salto, a cadeia ruidosa dos pensamentos interrompe-se. Há uma teleportação da consciência. Sessenta e Quatro. Antes do salto: os sete passos são de distância. O local de aterragem dos pés está encolhido pela perspectiva. Há voz nos pensamentos, de receio, de encorajamento----»Sessenta e Cinco----»Depois do salto. Nova perspectiva. A localização detalhada dos pés. Introspecção, sobre as repercussões da aterragem ao longo do organismo. Sessenta e Seis. Sessenta e Sete. Sessenta e Oito. Mas é possível forçar pensamentos enquanto não há contacto do corpo com a pedra. Se se calam, uma curiosidade leva-nos a experimentá-los durante o voo. Sessenta e [o ruído, ensurdecedor, é pura desconcentração. A desorientação pode levar à queda e à dor] Oito. A inocente experiência provoca um desequilíbrio ao aterrar. Sessenta e Nove. Setenta. O desequilíbrio provocado lembra-me de que, até aqui, todas as precisões me têm colocado, incólume, no outro lado do muro. Setenta e Um. Setenta e Dois. Mas mostrando como há, apesar de o mesmo propósito ser cumprido por cada uma, inesgotáveis diferenças entre cada salto. Um ponto de partida igual para saltos distintos entre si. Setenta e Três. Setenta e Quatro. Este, por exemplo. Os pés chegaram ao outro lado com o meio da planta. Quase com o calcanhar. Mas o equilíbrio mantém-se. Setenta e Cinco. Setenta e Seis. Força a mais… Mas, meio segundo depois, o corpo imobiliza-se, sob a orientação da ponta dos pés, da compensação dada pelos tornozelos, da absorção feita pela dobra dos joelhos, das costas esticadas e firmes, do contra-balanceamento dos dois pêndulos, direito e esquerdo, gémeos simétricos, do suporte de um pescoço que, de dizer que sim, que não, que talvez, estabiliza, sem esforço, todo o crânio – os olhos que vêem, os ouvidos que sustêm o equilíbrio. Setenta e Sete. Setenta e Oito. Faltam poucas. Setenta e Nove. Oitenta. Vinte apenas. É como se fosse impossível saltar exactamente da mesma forma, em dois saltos diferentes. Oitenta e Um. Oitenta e Dois. Não podemos confiar na repetição milimétrica de um salto que já conseguimos, outrora, fazer perfeito. Repetição não pode querer dizer reprodução física exacta, somente repetição da mesma intenção em circunstâncias o mais parecidas possível. Mas há uma certa confiança, crescente em cada salto, na capacidade de adaptação que vamos ganhando. Uma adequação de um determinado movimento, feito diferente de cada vez, a uma mesma intenção. Oitenta e Três. Oitenta e Quatro. Com o mesmo objectivo, mas uma variabilidade indiscernível – da força da impulsão, do equilíbrio no momento do salto, da direcção certa, das distracções com que o meio ambiente na sua aleatoriedade, e os nossos pensamentos na sua volatilidade, nos podem surpreender –, a garantia de uma precisão bem conseguida é conquistada durante o salto, com a adaptação infinitesimal de que o nosso corpo é capaz. E é isso que transportamos connosco, das garagens, para qualquer outro local. Oitenta e Cinco. Do exterior, são braços que se movem, com gestos característicos, mas sempre diferentes. Oitenta e Seis. Pernas que, primeiro, esticam, depois encolhem, depois esticam de novo. Oitenta e Sete. Todo um movimento, em cada fase repetido, em cada fase diferente de outro anterior. Oitenta e Oito. Do interior, são músculos que se dobram, ossos que vibram, matéria que é queimada na produção de energia que é consumida. Oitenta e Nove. Uma acção para cada reacção que, do exterior, é observável. Confiança conquistada pela aprendizagem do nosso comportamento perante a inquietante variabilidade de cada salto, dos recursos que temos, e que vamos ganhando com o treino, para lidar com ela. Noventa. Faltam dez precisões. Quem nunca fez já dez precisões de seguida? Noventa e Um. Noventa e Dois. Noventa e Três. Noventa e Quatro. Noventa e Cinco. Noventa e Seis. Noventa e Sete. Noventa e Oito. Noventa e Nove. E se caísse agora? Cem.