domingo, 9 de março de 2008

Uma via aberta

Para o enquadramento deste artigo sugiro um muro, um que seja da nossa altura, algures num espaço vazio. Se quisermos pode ser longo até perder de vista em ambas as direcções, não é relevante... e com uma largura de um a dois palmos.

Há não muito tempo, ao passear pela blogoesfera, deparei-me com uma reflexão inesperada. Surpreendeu-me porque contraria, em certa medida, uma noção que estava e está ainda bastante bem sedimentada na minha forma de encarar o Parkour. Essa reflexão que encontrei prende-se com a forma como lidamos com um obstáculo que nos desafia e que leva ao limite as nossas capacidades. Temos um muro que queremos deixar para trás, qual é então a disposição mental certa para o fazer?
Na sua viagem a Tours o Blane (www.blane-parkour.blogspot.com) teve oportunidade de treinar com o traceur francês Thomas Couetdic (www.thomadventures.blogspot.com), que faz parte de um grupo muito restrito de pessoas que estiveram presentes quando o Parkour estava em ebulição. O Blane escreveu depois no seu blogue alguns apontamentos sobre esta viagem e foi essa publicação que despertou a minha surpresa e, em última análise, o próprio artigo que escrevo agora. Para além de uma descrição da viagem e da estadia em Tours o Blane dedica parte do seu texto a algumas reflexões sobre o método de treino e a forma como o Thomas o incentivava perante um obstáculo mais desafiante ou um salto mais arriscado, que mecanismos mentais eram operados de forma a conseguir os níveis de motivação e confiança necessários para ultrapassar o desafio. É nesta altura que o Blane diz que o Thomas ajudava-o a ficar zangado com o obstáculo e que esse era o mindset ou disposição mental adequados para o superar.
Esta expressão palpitou no meu entendimento - “ficar zangado com o obstáculo”... Alguma coisa não batia certo, a expressão não soava bem, não encaixava. Julguei que podia tratar-se de um mal entendido e escrevi um comentário no blogue solicitando um esclarecimento. Algum tempo depois lá surgiu a resposta confirmando o que eu temia – eu tinha percebido bem. Para o Blane, usar a frustração contra o obstáculo é perfeitamente natural, é até desejável.
Durante um treino, principalmente num dedicado à repetição, é normal surgirem sentimentos de frustração perante algum obstáculo que não conseguimos concretizar, o tal muro longo até perder de vista, por exemplo. Depois de repetir uma e outra vez e ainda mais outra sem resultados é normal sentirmos que a falta de paciência aumenta em proporção com o número de vezes que já tentámos. No extremo, quando a frustração toma conta de nós, pontapeamos o obstáculo, irritados com ele por não nos deixar passar. O que o Blane defende é que devemos canalizar essa frustração, e os elevados níveis de adrenalina daí resultantes, no sentido de enfrentarmos o obstáculo com fúria bastante até o deixarmos para trás ou se quisermos, até o vencermos.
É precisamente nesta ideia, nesta noção de vencer o obstáculo que eu não me revejo. Simplesmente porque não acho justo. Não acho justo para mim porque estou a deixar que emoções agressivas e destrutivas tomem conta do meu estado de espírito e acima de tudo não acho justo para o obstáculo. O muro longo até perder de vista é feito de pedra. É um colosso quando comparado com a fragilidade do nosso corpo. Não se trata de o vencer, trata-se de o aproveitar. Na sua presença eu sinto-me humildemente arrebatado pela indiferença que ele mostra perante as minhas investidas, eu sei que não posso nada contra ele. Respeito-o.
Ao compreender isto passei a olhar para este tipo de dificuldades com um ângulo diferente. Por um lado tento cultivar a paciência e a calma quando não estou a conseguir os resultados pretendidos, tento corrigir o que estou a fazer mal de uma forma sistemática e organizada olhando para dentro na procura das respostas certas e não para o obstáculo como a razão do meu fracasso. Por outro lado passei a achar a própria palavra “obstáculo” desadequada. O obstáculo é “tudo o que impede o caminho ou a passagem”. Ora, todos sabemos que o Parkour é precisamente a descoberta de caminhos e passagens onde antes não os havia, os objectos que escolhemos atravessar são os instrumentos necessários a essa descoberta, são os próprios caminhos e não os obstáculos, são as soluções e não os problemas.
A visão do Blane e do Thomas é de facto diferente. O Blane é um entusiasta da sobrevivência, tem no seu blogue links para sites dedicados a como sobreviver no mato e a como transformar água contaminada em água potável, como sobreviver num ambiente urbano em caso de catástrofe ambiental e coisas do género, muito interessante. Para ele o Parkour é mais uma ferramenta de sobrevivência (não será apenas isso certamente, não estaria a ser justo), serve para estar preparado para um futuro inesperado. O que ele diz é que numa situação em que tenhamos de recorrer às nossas técnicas para sobreviver, é muito provável que o espectro das emoções que nos vão assolar se situe no domínio da frustração, da raiva, fúria, etc. Neste sentido, num treino completo devemo-nos sujeitar a estas emoções de forma a conseguirmos controlar o nosso movimento e o nosso corpo numa situação limite. É claro que esta perspectiva não está errada, eu simplesmente vejo as coisas de forma diferente. Para mim o treino deve ser um momento de tranquilidade, de sossego emocional, é isso que eu tento procurar e é nesses momentos, às vezes raros, de verdadeira conciliação que eu me sinto em harmonia com o espaço, com o tempo e com o movimento.

É essa harmonia de que falo que permite transformar o obstáculo num caminho e o caminho numa via aberta para o outro lado.

1 comentário:

Anónimo disse...

Interessante perspectiva acerca da emoções durante o treino do parkour Bruno! Não sei ao certo mas foi este o link que me enviastes? creio que sim não? pois complementa bem aquele texto que listes em meu Blog, mas enfim, é isso.


JC.