sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Spring




















































domingo, 14 de outubro de 2007

Pare, escute e olhe!

Descobrir qual é o percurso passa por descobrirmo-nos, conhecermo-nos, chegar a termos com a nossa forma mais essencial, mais elementar, que é a forma que tomamos no momento do salto. Aí, sem rédeas e sem rede estamos perante a dúvida e a certeza, à beira do momento em que fazemos a descoberta. Qual é então o caminho? Que via devemos seguir? Qual a direcção...? Julgo poder agora, com alguma serenidade, escrever sobre algo que vai, sem dúvida, tornar o meu percurso um pouco mais claro ( ainda que tão pouco o vislumbre na totalidade) e também mais fácil, em certa medida.
O movimento, em harmonia com o espaço, pode ser descrito de formas diversas - rápido, útil, ágil, fluído - eu gostaria agora de introduzir um novo elemento que pode enriquecer esta descrição. Esse elemento é o som. Pare, ESCUTE e olhe! A todo o momento os ouvidos podem estar ao serviço do nosso treino, em alerta constante, a avaliar a qualidade do som no momento do salto. Assim, o movimento pode, à luz deste parâmetro, adoptar novas e diferentes características - pode ser grave, pode ser agudo, pode ser seco, curto, longo, ou pode simplesmente não ser. O som do salto pode ser também um barulho, um ruído excessivo e desagradável mas muito eloquente na forma como explica a nossa chegada contra o objecto em vez de uma recepção harmoniosa. Estou convencido de que a procura deve passar pela eliminação do barulho, por completo. Quando possível, por conseguir o movimento em silêncio absoluto, suave, isento do ruído que nos devolve à gravidade. Julgo que é nesse momento, nesse instante de pura liberdade, que é possível ser verdadeiramente líquido sobre o objecto.

O silêncio existe. O silêncio é o som da sombra das coisas.

Mas a implicação fundamental, no meu entender, de trazer os ouvidos para os treinos é a forma como isso pode servir de filtro para sabermos aquilo que o nosso corpo é capaz de suportar sem sofrer qualquer dano. O que foi para mim a grande revelação foi entender que acima de tudo esta pode ser uma óptima defesa contra as lesões mais difíceis de avaliar, aquelas que surgem a longo prazo e que não sentimos imediatamente. Assim, podemos dizer que se não conseguimos saltar e aterrar em silêncio, o nosso corpo não está ainda preparado para o fazer. Existe, para todos nós, uma altura a partir da qual não conseguimos cair sem ruído e é portanto a essa altura que devemos estabelecer o nosso limite, dando dessa forma um sinal de respeito pelo nosso corpo.
Se na música ( que é a arte de tratar o som) cedo se compreendeu que o movimento tinha um papel central a desempenhar como podemos constatar em manifestações como a dança ou tal como nos deu a conhecer Émile Jaques-Dalcroze no domínio da pedagogia musical, por exemplo, então também na nossa forma de expressão ( que é a arte de tratar o movimento) o som deve estar presente e deve ser parte integrante do nosso percurso. De uma forma curiosamente paradoxal encarar o som como uma prioridade é também, tal como referi, procurar que ele passe despercebido. É, em última análise, procurar a sua mais absoluta diluição.

Depois do salto, a chegada. A quietude das coisas serenas. A serenidade das coisas paradas. O silêncio.

sábado, 15 de setembro de 2007

Air Alert III

Neste artigo, os autores d’"O Percurso" unem esforços para relatar uma experiência que partilharam, cada um em fases diferentes do caminho, com o programa de treino Air Alert III. Ao completar as 15 semanas que o perfazem, diversas reflexões urgem ser contadas, e é com esse intuito que surge a ideia de deitar mãos à obra a este artigo. Para melhor ilustrar a experiência foi também tomada a decisão de registar em filme o primeiro dia da última semana deste treino, tarefa que se apresentou árdua no planeamento e na execução mas cujo resultado foi gratificante. São estes registos e relatos que colocamos agora à vossa disposição.
 
Air Alert On Alert!
 




O Air Alert é um programa de treino para as pernas, feito por amadores, cujo objectivo é aumentar a capacidade de salto do praticante de uma qualquer actividade em que se precise de saltar. Segundo a descrição que nos é dada, o objectivo é levar à exaustão completa determinados músculos, nomeadamente os quadríceps e os gémeos, para que a recuperação permita um alcance maior com cada salto. O programa dura 15 semanas, ao longo das quais a carga de treino vai aumentando progressivamente, culminando com a 15ª semana, em que a carga é aumentada brutalmente, com a intenção de levar o atleta até ao seu limite. Ao todo, são 6 os exercícios que o compõem. Para uma informação sobre quais os exercícios e qual a forma de progressão do programa:
http://marchioli.weebly.com/uploads/4/1/1/0/411065/air_alert_iii.pdf

Pedro – 30 de Maio a 10 de Agosto de 2007:

O Air Alert não é unicamente uma experiência física. A completação do programa implica um certo rigor psicológico e muita vontade. Isto acontece devido a duas razões, que fazem do Air Alert um exercício diferente: O longo período de tempo em que se desenrola e o carácter metódico com que foi desenvolvido, não apenas relativamente ao número de repetições a ser feitas, mas também aos dias concretos em que têm que acontecer.
15 semanas é tempo suficiente para alguém mudar de opinião acerca da sua vida e do seu treino muitas vezes, tempo para ter picos de entusiasmo e excitação com o que faz e quebras fortes de abatimento e desânimo. É mais que tempo suficiente para se perder toda e qualquer motivação e esquecer que se começou sequer a fazer o programa. Banalizando, não se sabe onde estaremos amanhã, muito menos daqui a 15 semanas. No que estaremos a pensar e a sentir. A verdade é que basta muito pouco para mudar muito quando se trata de nos mantermos motivados perante uma tarefa que se apresenta dura e dolorosa.
Os criadores do programa são muito explícitos no que toca ao número das repetições e aos dias a serem feitas. Segundo eles, para que o programa resulte, tudo tem que ser seguido à letra tal como nos apresentam. Fisicamente é difícil, psicologicamente é muito mais. Isto porque o estado físico é um estado muito mais estável que o psicológico. Se não estamos a ser acometidos por nenhuma doença ou anomalia temporária e se não tivermos um qualquer acidente em que partamos um osso ou outro, então não acontece acordarmos de repente numa manhã e verificarmos que não nos conseguimos mexer, ou que temos os pés virados ao contrário, calcanhares para a frente. No entanto, quão fácil não é acordarmos macambúzios, irritados, sombrios ou simplesmente tristes. Basta muito pouco. Perder o autocarro ou a constatação da rotina que levamos para o trabalho. Acontece que, independentemente dos dias bons e dos dias maus, o programa tem que ser cumprido naquele dia específico, e aquelas repetições particulares têm que ser feitas, até à última. Não só esta questão dos níveis de motivação necessários terem que ser altos durante o período, mas todas as questões logísticas que se vão intrometendo. Com o avançar do programa, o tempo necessário para o completar em cada dia vai aumentando, consequência do aumento do número de repetições, do número de séries e do tempo de descanso necessário entre cada série, o que tende a gerar conflitos com tudo o resto que preenche a semana: Aulas, encontros, refeições, horas de estudo, os próprios treinos… No limite, tudo acaba por ser afectado, incluindo as horas de sono, para que seja possível arranjar disponibilidade para fazer os exercícios.
Encarar o Air Alert seriamente é procurar, por tudo, não faltar dia algum nem omitir repetição alguma. Precisamente porque fisicamente não faz diferença no dia 3 da semana 12 falhar duas repetições mas psicologicamente sim. O valor do programa está naquilo que o atleta investir nele. Encará-lo como um colosso a derrubar é inevitável, mas lutar com tudo para o conseguir derrotar é virar toda a ideia do avesso e pôr todas as dificuldades do programa a nosso favor. A maioria dos treinos que fiz depois de completar a sessão de Air Alert desse dia foram melhores que outros em que não era dia de fazer Air Alert. A pernas estavam muito mais prontas a reagir, muito bem aquecidas e como que verdadeiramente activadas. Antes de pensar em fazer um salto já me sentia sem os pés no chão. Aqueles dias em que menos vontade sentia para me levantar e pôr-me aos pulos foram os permitiram a maior satisfação após a última repetição do último exercício. Nesses dias sombrios, o Air Alert deixou de ser um fardo a carregar para passar a ser a laje sobre que caminhei durante o resto do dia. Simplesmente sentia-me feliz por ter conseguido ultrapassar aquele momento em que uma dúvida muito concreta e familiar assomou à mente e me tentou distrair daquilo que queria realmente fazer comigo.
Em suma, o Air Alert é um programa fisicamente desgastante e arrojado. A prova disso é, por exemplo, os tempos de descanso entre exercícios ao longo das 15 semanas. Se comecei a descansar 1 minuto e meio, tal como prescrito, acabei a descansar, na última semana, 10 minutos, depois de certas séries. Psicologicamente, o longo período de tempo que exige para ser completado torna-o um desafio hercúleo. Como uma terra por arar, que só produzirá bons frutos se se despender o tempo e o esforço necessários a cultivá-la, quanto mais rigor e empenho, mais viçoso e saboroso crescerá o alimento.
Quanto a esse mesmo alimento, não é nunca uma questão de o programa resultar ou não. Se for cumprido, resulta sempre. A verdadeira questão é o que fazer com a nova força que alcançamos.

Bruno – 28 de Agosto a 8 de Dezembro de 2006:

A primeira semana foi em Agosto. 2006. Não me recordo exactamente das expectativas que tinha quando comecei. Sei no entanto que não tinha certezas sobre se iria terminar, não sabia que resultados iria atingir e certamente não tinha noção do peso que tamanho empreendimento iria tomar na minha rotina. Nessa primeira semana, aquela que tem a carga de treino menos pesada, a sessão durou cerca de meia hora, o tempo de descanso foi respeitado, não rigorosamente confesso porque a fadiga fez-se notar (apesar de não ser uma sessão muito dura não é de todo fácil para quem nunca fez um treino semelhante), mas comecei. Com o passar do tempo esta meia hora, três vezes por semana, transformou-se rapidamente em 45 minutos, 1 hora, 1 hora e meia, isto porque o número de repetições aumenta, o número de séries também e o tempo de descanso entre elas (apesar de não ser suposto) cresce inevitavelmente. Quando me aproximei do fim do programa, na semana 13 e na semana 15 principalmente, a duração do treino chegava facilmente às 2 horas e aí o impacto na forma como organizava o meu dia e a própria semana era tremendo. A certa altura tudo parecia girar em torno do Air Alert – as horas a que acordava, as horas em que estudava, as horas das refeições, etc. Foi necessário obrigar-me a uma disciplina rigorosa para garantir que chegava ao fim.
No entanto devo dizer, sinceramente e sem qualquer presunção, que desistir nunca fez parte dos meus planos. Cedo compreendi que resultados verdadeiramente significativos só seriam conseguidos com a conclusão do programa e apesar de saber também que é perfeitamente possível ir e voltar ao treino sem a assiduidade académica que nos é imposta e que nada negativo daí advém, a verdadeira maximização do esforço aplicado no Air Alert só é conseguida ao terminar as quinze semanas de treino. Mais tarde, ao conversar com o Pedro sobre esta mesma questão, chegámos à conclusão (não totalmente fundamentada, claro) de que em última análise a eficácia do Air Alert resume-se simplesmente à realização da décima quinta semana do programa e de que todas as outras não são mais do que uma preparação para o esforço final a que temos de sujeitar as pernas. Por outras palavras, é durante esta última semana que os resultados mais significativos são cozinhados pois aí o treino está feito para esgotar completamente os músculos e lançar a sua recuperação, ao fim da qual podemos comprovar os resultados do nosso esforço.
Agora, um ano depois de ter começado e muitos meses depois de ter terminado, sinto poder tirar partido deste investimento em cada treino que faço. Contudo, o Air Alert não saíu ainda da minha vida. Regresso, com uma regularidade que tento que seja semanal, à sessão que é proposta na oitava semana do programa, no sentido de dar continuidade aos resultados obtidos. Agora que as pernas estão mais fortes é também desejável abordar este treino com um rigor que não foi possível respeitar durante o programa completo – tento saltar mais alto em todas as repetições, tento reduzir o tempo de descanso entre as séries e tento não descansar de todo no momento em que mudo de exercício.
Para terminar gostaria de fazer notar que o Air Alert não serve só para saltar mais longe ou mais alto, na verdade, o fortalecimento das pernas traduz-se também (independentemente das distâncias) numa capacidade para fazer uma chamada mais determinada, uma chegada mais controlada e até uma corrida mais ligeira e por isso mais fluida. O Air Alert permite saltar mais longe mas acima de tudo permite saltar melhor.

domingo, 19 de agosto de 2007

O Parkour por contraste (parte 1)

O desporto em geral tem uma função muito específica na sociedade. Entre outros, tem o papel de entreter os cidadãos, balanceando com uma descarga regular de emoções o acumular angustiante da vida de trabalho e obrigações que mantêm. Independentemente do significado que poderá dentro da sociedade o desporto e o Parkour, procuro distinguir aqui, de um ponto de vista mais particular, as diferenças conceptuais entre estas duas actividades, apontando algumas consequências no que toca à experiência de cada uma delas.

A meu ver, faz todo o sentido distinguir, realçar e separar o Parkour de todas as outras formas de actividade física que o Homem soube inventar e desenvolver até hoje. Estas actividades, segmento-as de uma forma lata, por questão de facilidade na exposição das ideias, salvaguardando, contudo, o valor que cada uma dessas actividades tem por si mesma. Desta forma, separo-as em jogos, desportos radicais, artes marciais e ginástica/atletismo.

Jogos

Desde que tem consciência de si que o homem vem criando formas de se entreter, de passar o tempo, desafios que, por alguma razão obscuramente explicada pela tendência para a sobrevivência que tem, lhe dão gozo superar. O gosto que, individualmente, o praticante de um desporto tem, é algo de muito diferente do gozo que a audiência tem em vê-lo praticar esse desporto. Se o primeiro é levado, quase de uma forma irracional, pelas emoções que a tarefa que tem perante ele lhe suscita, toda a mínima jigajoga que acontece dentro dele e que sente com prazer, a segunda é levada ao frenei dos aplausos ou dos apupos por uma qualquer sensação de admiração que esperam poder vir a sentir por quem joga, por quem se prostra diante dela, todos os caminhos que essa pessoa lhes permite percorrer através do simples facto de a verem fazer algo que a seus olhos parece, fantástico, deslumbrante e, por vezes, impossível.

Todas aquelas actividades que englobo na categoria de jogos têm um conjunto de características que, se por um lado lhes são próprias, por outro são requisitos necessários para que tal actividade seja tida como um desporto. Destas, vou-me referir exclusivamente às que não estão presentes no Parkour, de forma a procurar definir, por contraste, aquilo que se pode entender como Parkour.

A primeira destas é o objectivo. Todos os jogos são constituídos, na sua essência, pelo binómio objectivo/regras. Ao ser apresentado a alguém, é quase certo que aquilo que lhe for dito e aquilo que essa pessoa espera ouvir para poder “entender o jogo” é o objectivo a ser cumprido, ou seja, aquilo que ela tem que fazer para que a sua participação nele seja um sucesso.

A segunda destas características são as regras. Nestas, incluo todas as normas a serem seguidas ao se participar nesse jogo, tudo quanto se deve e não deve fazer, se pode e não pode, para que o pratiquemos correctamente. Numa palavra, todo o edifício jurídico que subjaz à sua prática. De uma maneira geral, são estas regras que dão gozo ao jogador, elas são a razão de ser de todo o jogo. De facto, a diversão é extraída do simples percurso que uma pessoa leva a atingir o objectivo desse jogo cumprindo as regras estipuladas. São elas que criam o desafio que nos dá tanto gozo superar ou ver superado. Elas variam consoante o objectivo a ser cumprido e, como tal, com o jogo em questão. Não as havendo, o resultado é fácil de verificar: pensemos apenas na possibilidade de se poder usar as mãos no futebol, um escadote no basket, ou puxar a rede no volley. O objectivo seria de imediato cumprido, sem dificuldade alguma e o jogo perderia todo o seu propósito. É talvez por isso que os melhores do mundo num determinado jogo, aqueles que apenas surgem de tempo a tempos, muito raramente ou nunca quebram as regras daquilo que dominam. Eles sabem bem no seu íntimo que o sentido de jogarem àquilo só está nas regras e no rigor com que são cumpridas, que esse é que é o desafio, não o atingir do objectivo simplesmente. Num jogo como o xadrez, tal questão nunca se coloca, mas num como o futebol, ela surge constantemente dado a leviandade com que as faltas, a quebra dessas regras, são cometidas.

A terceira é a interacção com objectos e locais específicos. Todos os jogos utilizam um ou mais objectos para construir um objectivo a ser cumprido e regras de regulação na utilização desse objecto. Retirando-se o objecto, ou privando os jogadores de um local com determinada característica (uma baliza, uma rede, etc), o jogo deixa de poder acontecer.

As consequências trazidas por estas três principais características dos jogos, no que toca à sua prática concreta, são o fechamento e a limitação da imaginação e capacidades do praticante a uma estrutura imóvel e rígida, cujo valor está na sua imutabilidade ao longo do tempo. É por isso que é muito fácil para nós imaginarmos o protótipo ideal do jogador de um qualquer jogo. Tem que ter a característica X, ser capaz de fazer Y, ser Z, e terá sucesso garantido. Tal é possível precisamente devido a toda a bagagem conceptual acabada, todo o vasto conjunto de modelos que a concepção de cada jogo traz consigo. Fazemos corresponder a cada item de tal concepção uma aptidão física ou psicológica e reunimos o “necessário” para alguém ser bom jogador. Eu chamo limitada a esta concepção porque, para qualquer jogo que haja, o praticante ideal nunca precisará de ter todas as aptidões e capacidades humanas desenvolvidas ao máximo. Para um basquetebolista, a capacidade de medir distâncias e adaptar a força dos dedos e dos braços ao lançamento de uma bola consoante as distâncias que mede são essenciais. Porém, não há necessidade alguma de desenvolver a capacidade de leitura descentralizada da movimentação em grupo que os jogos como o Rugby implicam. Ao nível físico, este aspecto torna-se ainda mais explícito. No limite, seria possível apontar tudo quanto impõe a prática perfeita do basquet. Seria uma lista grande, mas finita.

O prazer e utilidade que advêm da prática e visualização destes jogos têm muito a ver com a relação entre algo que tem que ser sempre permanente e fechado, a forma como se joga e a razão por que se joga, e tudo quanto, dentro dos limites impostos por cada estrutura em particular, pode acontecer de extraordinário, de incomum. É nessa dialéctica do que o que se espera com o que se sabe poder acontecer inesperadamente que o prazer surge. Se, num jogo de futebol, houver golos, sabe-se e espera-se que tal aconteça com a bola a entrar dentro da baliza. Porém, ainda que se possa antecipar muitas maneiras para isso acontecer, há muitas outras em que não pensámos e que são possíveis, e é seguramente à procura dessas que nos sentamos a ver o jogo, quanto mais imprevisíveis e inconcebíveis, melhor. Aplaudimos, por isso, aquele que for capaz de imaginar essa maneira incrível de, cumprindo as regras, atingir o objectivo do jogo utilizando os meios à sua disposição. A sua imaginação é fundamental para o seu sucesso, mas apenas enquanto estiver refreada pela estrutura do próprio jogo, enquanto esta lhe servir do molde. Assim, ela pode ser usada para qualquer coisa… desde que, no caso do futebol, não utilize as mãos, não haja agressão física ou verbal, não saia com a bola para fora das linhas, etc. fora todas essas limitações, a imaginação é livre, mas, devido a elas mesmas, torna-se limitada.

Independentemente das imensas possibilidades encerradas de diversão, entretenimento e prazer que um jogo encerre, ele está sempre sujeito ao seu carácter fechado que já referi. Assim tem que ser porque apenas assim é que ele tem piada. Desta forma, cada jogo transmite uma sensação de gozo única e específica desse mesmo jogo, e apenas a sua própria. A procura desenfreada de formas novas para nos encontrarmos com o que somos capazes de fazer e para nos divertirmos com isso, aliada à criatividade que nos define enquanto espécie, levou-nos a um sem número de descobertas e criações diferentes e variegadas, desde o futebol ao ténis, do golfe ao xadrez. Cada um encerra modelos e estruturas que permitem o desenvolvimento de faculdades específicas e exigem diversos tipos de talento. Cada um leva consigo obrigatoriamente as três características e tudo quanto elas implicam.

Fim da 1ª parte.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Comutações


terça-feira, 17 de julho de 2007

A dúvida

O propósito do presente blog é o de explorar, por qualquer meio e utilizando qualquer ferramenta, tudo o que implica e representa o Parkour na nossa vida e na forma como encaramos o mundo.

Talvez por demasiado querer ou uma intenção algo ansiosa, mas decerto também devido à falta de experiência, têm surgido dificuldades ao nível da inspiração e da estruturação das ideias que gostava de expor. Sobrepondo o seu peso ao destas razões, uma certeza, mais do que qualquer outra, tem dificultado o arranque dos passos iniciais deste percurso: a dúvida. Como um estado de espírito recorrente, e arrastando consigo um humor perturbador, o desamparo que uma forma de estar algo insegura, e muitas vezes pouco firme, provoca na minha relação com aquilo que sinto poder ser um dos maiores bens da vida, tem vindo a alojar num pântano de reticências alguns sonhos e aspirações que sinto em bruto poderem brotar da forte e completa presença do Parkour na vida de alguém. Faz, portanto, todo o sentido que exponha no blog um tópico sobre esta dúvida.

As causas associadas à tão forte presença de uma tão amarga disposição na minha vida são-me desconhecidas. Conhecida é a maneira como este sentimento vai e volta, como se afasta para de novo retornar, como se despede para, no momento seguinte, me cumprimentar de novo. Sei acerca dele que ganha a sua força junto daqueles elementos da minha vida que me são mais caros, engordando à custa dos receios que sinto pela vulnerabilidade de determinadas zonas privilegiadas da minha existência subjectiva. Parece ter, como condições para florescer, a envolvência da minha atenção e do meu interesse e a minha entrega emocional, de forma recorrente, ao longo de determinados períodos de tempo, com a consequente possibilidade de desgaste desse material de que são fabricadas as emoções sempre que tudo parece correr mal o que, no limite, me conduz a cinzentas situações de angústia. Um exemplo destas, relacionado com a vida de qualquer traceur, são aquelas situações em que me sinto não estar a evoluir como deveria, como se estivesse permanentemente a perder um comboio em que todos os outros traceurs já embarcaram há muito, ou aqueles finais de dia em que, finado o treino, sinto não ter conseguido ser forte o suficiente para dar o máximo.

Acho que sentir dúvidas em relação a algo é conceder a isso sobre que se sente dúvidas uma importância já por si relevante, de tal modo que nos sujeitamos, por isso, a colocarmo-nos na frágil situação de nos sentirmos mal sempre que algo corre inesperadamente mal. Sabemo-nos nesta situação, em relação a algo, quando nos ouvimos inconscientemente sussurrar a nós mesmos que gostamos tanto de algo ao ponto de não querermos nunca vir a sentir o mais pequeno amargo travo que nos traz a antecipação sobre a perda disso de que gostamos. Afinal, quem ainda não pensou em desistir de treinar? Quem não se perguntou ainda se foi feito para o Parkour?

Não sei por que mecanismos obscuros a minha consciência opera em mim esta relação com aquilo que aceita no seu círculo mais íntimo, mas sei ser muito viva esta sensação de dúvida fundada em temores e receios de perda e descontinuidade, capazes de me conduzirem amiúde a dias de solidão amarga e impotência, cuja origem, ironicamente, se encontra na força da entrega.

A dúvida, sinto-a em relação ao Parkour.

Sinto esta frase nua. Despida de qualquer pretensão, romantismo ou ironia, tal e qual como a lâmina que, forjada e afiada recentemente, corta despretensiosamente a carne. Aterroriza-me, com esta dúvida, a sensação latente de me querer apoiar no gosto que tenho por algo cuja importância na minha vida ainda não vislumbro totalmente e que, por isso, não consigo sentir como algo firme e seguro sobre que me apoie. Acorrentada a esta dúvida, porém, sinto a mais profunda certeza, de que, o que quer que seja o Parkour como ideia e qualquer que seja o peso da sua importância na minha vida, os caminhos por que me leva no pensamento e na imaginação são dignos do esforço de querer pô-los por escrito. Sei, porém, que tal tarefa apresenta-se não apenas hercúlea, mas, de certo modo, impossível de concluir. Resta-me tentá-la, e o resultado apresenta-se aqui.

Em relação a esta dúvida, descrevo-a como algo que seca, que chupa vitalidade, capaz de me pregar a uma cadeira, em frente a um computador ou televisão. Se a ideia de ir treinar aflora à consciência, ela apresenta logo de seguida todo um conjunto variegado de interesses e opções, alternativas ao esforço físico que o meu corpo pede para não sentir e encarrega a mente de garantir que assim não aconteça, como, a uma ferida aberta, procuramos com urgência imediata estancar o sangue com panos e pensos. Sinto-a prendendo-me os pés ao chão, reforçando a acção da gravidade sobre um corpo que progressivamente sinto mais absorto, ao ponto de me convencer a ficar em casa a ver um filme ou a ler um livro, repousando negligentemente pelos dias arrastados de uma semana preguiçosa. Esta dúvida, sobre se devo ou não ir treinar, se quero sair ou permanecer, se realmente devo mudar-me para o Parkour ou apenas visitá-lo esporadicamente, sinto crescer com a intromissão a que, de facto, vou dando azo à medida que me vou envolvendo mais e mais. Ela veio despertar uma querela interna entre duas atitudes perante as coisas da vida em geral, e o esforço físico em particular, que alternadamente se apossam da minha maneira de estar: Uma paixão e devoção juvenis e fogosas que vivem, em toda a sua pujança, num corpo jovem, originadas daquela postura adolescente para com a vida, caracterizada pela vivência intensiva e frenética das experiências, e toda a força acumulada e desperdiçada de uma apatia construída diariamente, uma apatia que poderia ser chamada de moderna, ligada a um estilo de vida recente, de não mais que 100 anos, que toma conta do nosso corpo e atitudes, tão subtilmente quanto o pó que assenta num livro que não se abre há muito tempo, deixado negligentemente entregue à companhia da solidão, numa velha estante de madeira escura num canto do nosso quarto.

Julgo que a dúvida que procuro apontar aqui é a forma como se manifesta, na minha consciência, este embate. Perante a necessidade de mudar que o Parkour cria e exige, com toda a eliminação de hábitos tão profundamente enraizados, aprendidos desde há muito por mim enquanto membro da sociedade onde estou, a resposta mais natural de todas foi a do miúdo que, pela primeira vez visita a praia. Excitado, corre freneticamente atravessando a areia escaldante em direcção à grande massa azul que, com uma única visão, o engole por inteiro. Deslumbrado, deixa-se entregar hipnotizado ante aquela visão de potente força da natureza, deixando-se guiar inconscientemente até à sua beira. Uma vez aí chegado, à medida que vê as pequenas ondas enrolarem e baterem no chão cada vez mais próximo de si, sente o seu ímpeto ceder, a pouco e pouco a energia consumindo-se em pequenos sustos e suspiros de receio. Gradualmente, o miúdo vai-se apercebendo da imensidade que aquela grande superfície azul encerra em si, de todos os pequenos mundos que dentro de si permite viver, da titânica presença de que é capaz, de quão alto o permite, a ele, subir. E cair. Então, numa disposição ambígua, aproxima-se da água fria e afasta-se de seguida, corre para ela soltando risadas de excitação e, tocando-lhe com o dedo do pé, retorna rapidamente para onde a terra é seca e parece firme. É nessa dança emocional de entrega e afastamento que vai dando os primeiros passos no conhecimento do que o rodeia e do significado daquele todo azul magnífico. Procurando projectar tal dança sobre a minha relação com o oceano em que queremos todos mergulhar, julgo que a existência de tão grande dúvida e receio em mergulhar de cabeça nas suas águas se deve ao tamanho que o fenómeno do Parkour pode ter na minha vida e, mais importante, à consciência que eu tenho dessa totalidade. Ao que ela implica. Sabê-lo é sentir um peso sobre os ombros, a responsabilidade de trabalhar para a construção de alguém que o Parkour me diz, por todas as suas letras, ser possível criar.

Sobre que totalidade é esta e como ela nos leva a encarar o Parkour como um verdadeiro Percurso, não cabe falar neste post. Ele só pode servir como apontamento e breve esboço desta dúvida de que falo. Serve para dizer que a sinto em mim quando penso no Parkour, e que isso é o mais fidedigno dos sinais de que este já entrou na minha vida.

terça-feira, 10 de julho de 2007

A Varanda Branca

















domingo, 8 de julho de 2007

A rede

A rede produz quantidades inesgotáveis de informação sobre quantidades inesgotáveis de assuntos. Parkour é um assunto sobre o qual pesquiso com frequência - é possível encontrar vídeos, fotos, blogues, fóruns, toda uma panóplia de plataformas onde o Parkour se manifesta. Todas elas servem como meio de comunicação entre traceurs, principiantes, meros curiosos ou cibernautas em geral. Este facto é particularmente notável se pensarmos que a rede torna-se assim, não uma forma entre outras para partilharmos este fenómeno, mas sim A forma, aquela que monopoliza todo o movimento.
A explosão do Parkour na Grã-Bretanha, por exemplo, é sistematicamente atribuída à emissão do documentário Jump London em 2003 e do conhecido anúncio de televisão que o David Belle fez para a BBC. Tanto um como outro foram colocados on-line e tornaram-se vídeos vistos quase religiosamente pelos traceurs emergentes no Reino Unido. Depois disto o fenómeno estendeu-se rapidamente pelo resto da Europa e pelo mundo, sendo os vídeos referidos, juntamente com outros mais antigos oriundos das televisões francesas, os mais vistos sobre o assunto no Youtube e noutros sites semelhantes.
Não quero de maneira nenhuma transformar esta publicação numa lição sobre a história recente do Parkour mas parece-me importante contextualizar estas ideias. Perdoem-me os leitores esta liberdade.
O fundamental, no meu entender, é a naturalidade com que podemos aceder às diferentes visões que os traceurs de todo o mundo apresentam sobre o Parkour, (nos vídeos principalmente mas também nos blogues, nos fóruns, etc.) e como podemos aprender com estas diferentes perspectivas, identificando-nos mais com umas do que com outras, naturalmente, mas aprendendo, sempre. É notável a sinergia criada à volta deste movimento - dinamiza-o, fá-lo crescer, evoluir, mas acima de tudo transporta-o livremente.
Do outro lado do espectro em relação a uma das formas mais antigas de transmitir informação, a tradição oral, surge assim um fenómeno novo a que podemos chamar tradição ciberespacial. O Parkour é, talvez, a primeira forma de expressão que, ultrapassando os limites da rede ( e de que forma o faz!), obedece a esta tradição propagando-se através dela.
Os autores deste blogue passam assim a fazer parte desta experiência extraordinária, esperando dar o seu melhor contributo.