segunda-feira, 9 de junho de 2008

O paradoxo da rede

Uma das características mais importantes do Parkour, que está para além da sua dimensão física, é o movimento comunitário que é capaz de gerar e do qual, por sua vez, ganha energia. Por comunitário, refiro-me a uma nova forma de acontecerem as relações sociais, diferente já daquela em que pessoas moravam mais ou menos próximas, partilhavam lugares, serviços e acontecimentos. Creio que evolui a partir desta ao passar a incluir um paradoxo, permitido pelas novas tecnologias e por toda a tradição ciberespacial consequente. Este consiste na vivência de um acontecimento por duas formas até agora mutuamente exclusivas – a local e a global. A tal ponto, que os próprios conceitos de local e global já se vão confundindo, quando acontecimentos, eventos, feitos e conquistas alcançadas a muitos quilómetros de distância se apresentam com a mesma força, a mesma insistência e a mesma importância do que outros ocorridos a alguns quilómetros apenas. Contribui para isso a própria natureza da Internet, onde não existe o conceito de distância, porque tudo está em todo o lado ao mesmo tempo, nem o de movimento de informação. Curioso como vive o Parkour de um fenómeno completamente estéril de movimento.

Este fenómeno vai, ainda assim, muito para além do Parkour. É um fenómeno social total. O que é muito particular do Parkour é o facto de ter aparecido e se ter desenvolvido já dentro deste novo espírito comunitário. Não houve nunca Parkour fora de um mundo onde a importância, o valor e nosso contacto com os acontecimentos perderam o seu referencial tradicional – a aproximação física de cada um a esses acontecimentos –, ganhando um outro… qual? Ainda não se sabe muito bem. Se antigamente aquilo que era importante na vida das pessoas, que tinha o poder de as afectar, mudar de ideias, aquilo que preenchia a sua existência, no sentido mais forte da expressão, era determinado em quase toda a sua totalidade pela sua aproximação e pela distância, hoje, esse marco começa a tremer à medida que a Internet vem destruir essa distância. Se a televisão começou a configurar este novo mundo, e cada contributo tecnológico antes dela também, a Internet imprimiu uma velocidade frenética às mudanças que só se podiam timidamente antever, empurrando-nos para ele quase sem darmos conta disso.

A aproximação cronológica da explosão cibernética e do surgimento do Parkour dá-nos a suspeita de que todo o movimento deste seria muito diferente caso imperasse o referencial social tradicional, ao mesmo tempo que nos deixa o sinal de que precisa deste novo paradoxo para respirar, como são precisos os conselhos, os vídeos, os artigos, as imagens para o traceur, de Lisses, de Cambridge, do rigor francês, da eficácia britânica, do instinto letão, e como há tanto deles no nosso treino, nas nossas escolhas, no nosso método. Quem seria David Belle sem a nova tradição? Teria permanecido um bombeiro local, com longas e belas lembranças de uma juventude passada a subir muros, paredes e árvores, momentos de companheirismo são com os seus vizinhos de Lisses, e nada mais que um registo vago na memória de tempos idos e perdidos. Que seria feito dessa semente cultivada em terra francesa sem o adubo tecnológico e a energia proveniente de todos os cantos desta aldeia global? Germinaria? Estiolaria?

Nota: este artigo retoma um tema tratado previamente no artigo "A rede".

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