domingo, 6 de abril de 2008
domingo, 30 de março de 2008
Cem por extenso
Garagens. Com um cheiro a pó, o espaço é jogado pelas sombras, vestido de uma cor baça pelas entradas de luz irregulares. O ritmo é marcado pelo timbre metálico da sarjeta, pisada pelos carros que vão entrando e saindo, indiferentes à sagrada beatitude do local.
A abundância de percursos que as garagens permitem leva a que, recorrentemente, planos já traçados se entrecruzem entre si, intenções se sobreponham, mesmo necessidades físicas se alterem. A riqueza da sua configuração desperta uma vontade infantil para a brincadeira, e facilmente nos soltamos à maré do improviso. Talvez seja preciso um sítio como este para que um treino de braços se torne na experiência nova de um treino de cem precisões seguidas.
A ideia, nascida na crescente tradição, mantinha-se adormecida. Levado pela distância inocente dos dois lados de um muro, conduzido pela sua energia pétrea, o meu corpo repescou-a, despertou-a, e, na repetição dos seus gestos, na quase monotonia dos seus passos repetentes, fez-me ver que a tinha posto em prática.
“Se fizesse cem precisões?”, atrasado, perguntei-me.
Depois da consciência, chegaram os cálculos e as medições. Sete pés, palmo de grossura, de uma textura áspera, dificilmente escorregadia. Um conhecido, é certo. Uma. Duas. Três. Com uma meta traçada sucedem-se questões, dúvidas, avançam-se hipóteses. Há um apelo a uma certa determinação, porque parece que um pensamento nunca vem só. Quatro. Não chega fazer a precisão, há que ter cuidado com a fluidez, polir cada passo. Cinco. Um número tão grande permitirá isso mesmo. Seis. São três. Da aterragem, de um lado do muro, ao outro lado, de onde parte a sétima precisão, são três passos no mínimo. Sete. Oito. Nove. Pontas dos pés. Dez. Pontas dos pés. Onze. Mais na ponta ainda. Doze. Treze. Quanto mais na ponta, menos o barulho no impacto. Catorze. Quinze. Milímetros abaixo dos dedos dos pés, a precisão oscila o mínimo. Dezasseis. Quanto mais perpendicular ao muro chegar, mais progressivo o contacto da área do pé com o muro. Dezassete. O joelho direito sugere uma mudança de exercício. O pequenino estalinho remete-me para o aquecimento. Também para a postura do corpo todo na aterragem, exige uma distribuição mais equitativa da energia no momento do contacto com a pedra amarela. Dezoito. Melhor. Dezanove. Estalinho. Vinte. Assim ainda não, mais cuidado, mais postura. Vinte e Um. Isso. Vinte e Dois. Vinte e Três......Vinte e Quatro..........Vinte e Cinco................Vinte e Seis........................Vinte e Sete....................................Vinte e Oito. A passagem deve poder ser mais fluida, mais eficaz. Vinte e Nove. O mínimo de tempo possível, mas mantendo-me em cima do muro. Trinta.............Trinta e Um..........Trinta e Dois.....Trinta e Três. Mais de seguida, ainda. Trinta e Quatro...Trinta e Cinco. Trinta e Seis.Trinta e Sete.TrintaeOito.TrintaeNoveQuarenta.
Descanso.
Há um desvio da atenção do muro, um olhar em redor, turvo. A necessidade de regular a respiração e as gotas de suor que vão brotando um pouco por toda a pele são produtos do exercício, do que este muro de sete pés tem para dar. Parar, por instantes que sejam, desviar a atenção e pensar noutra coisa, é como uma lufada de ar fresco. Deixar o muro, o exercício, o movimento, absorver-nos totalmente desampara também. Pode ser asfixiante…
…faltam Sessenta. Quarenta e Um. Quarenta e Dois. Quarenta e Três. Quarenta e Quatro. A concentração parece como o mergulhar da mão numa terrina com água quente. O contraste é evidente ao início, enquanto a diferença entre as temperaturas é maior. Abandonando a mão inerte, o tempo equilibra essa diferença, e a percepção de calor esmorece progressivamente. Perde-se, por fim. É uma pequena oscilação, da mão ou da terrina, que torna a desequilibrar as quantidades de energia térmica, avivando a sensação de novo. Quarenta e Cinco. Quarenta e Seis. Quarenta e Sete. Como se os pensamentos fizessem a terrina oscilar. Quarenta e Oito. Quarenta e Nove. Cinquenta. Metade. Cinquenta e Um. E o grau de concentração, que nos vai aproximando de um instinto do movimento, se perdesse. Cinquenta e Dois. Cinquenta e Três. É como se, por um certo receio do puro instinto, de uma incontrolada inconsciência, pensamentos despoletassem automaticamente, por sobrevivência, segundo as regras aprendidas pela evolução. Cinquenta e Quatro. Cinquenta e Cinco. Mas automaticamente porque obedecendo a um instinto também, outro instinto, como espécies animais que somos. O inapelável instinto humano de sermos racionais. Cinquenta e Seis. Guerra civil de instintos. Cinquenta e Sete. Cinquenta e Oito. Cinquenta e Nove. Sessenta. Sessenta e Um. Sessenta e Dois. Sessenta e Três. Durante o salto, a cadeia ruidosa dos pensamentos interrompe-se. Há uma teleportação da consciência. Sessenta e Quatro. Antes do salto: os sete passos são de distância. O local de aterragem dos pés está encolhido pela perspectiva. Há voz nos pensamentos, de receio, de encorajamento----»Sessenta e Cinco----»Depois do salto. Nova perspectiva. A localização detalhada dos pés. Introspecção, sobre as repercussões da aterragem ao longo do organismo. Sessenta e Seis. Sessenta e Sete. Sessenta e Oito. Mas é possível forçar pensamentos enquanto não há contacto do corpo com a pedra. Se se calam, uma curiosidade leva-nos a experimentá-los durante o voo. Sessenta e [o ruído, ensurdecedor, é pura desconcentração. A desorientação pode levar à queda e à dor] Oito. A inocente experiência provoca um desequilíbrio ao aterrar. Sessenta e Nove. Setenta. O desequilíbrio provocado lembra-me de que, até aqui, todas as precisões me têm colocado, incólume, no outro lado do muro. Setenta e Um. Setenta e Dois. Mas mostrando como há, apesar de o mesmo propósito ser cumprido por cada uma, inesgotáveis diferenças entre cada salto. Um ponto de partida igual para saltos distintos entre si. Setenta e Três. Setenta e Quatro. Este, por exemplo. Os pés chegaram ao outro lado com o meio da planta. Quase com o calcanhar. Mas o equilíbrio mantém-se. Setenta e Cinco. Setenta e Seis. Força a mais… Mas, meio segundo depois, o corpo imobiliza-se, sob a orientação da ponta dos pés, da compensação dada pelos tornozelos, da absorção feita pela dobra dos joelhos, das costas esticadas e firmes, do contra-balanceamento dos dois pêndulos, direito e esquerdo, gémeos simétricos, do suporte de um pescoço que, de dizer que sim, que não, que talvez, estabiliza, sem esforço, todo o crânio – os olhos que vêem, os ouvidos que sustêm o equilíbrio. Setenta e Sete. Setenta e Oito. Faltam poucas. Setenta e Nove. Oitenta. Vinte apenas. É como se fosse impossível saltar exactamente da mesma forma, em dois saltos diferentes. Oitenta e Um. Oitenta e Dois. Não podemos confiar na repetição milimétrica de um salto que já conseguimos, outrora, fazer perfeito. Repetição não pode querer dizer reprodução física exacta, somente repetição da mesma intenção em circunstâncias o mais parecidas possível. Mas há uma certa confiança, crescente em cada salto, na capacidade de adaptação que vamos ganhando. Uma adequação de um determinado movimento, feito diferente de cada vez, a uma mesma intenção. Oitenta e Três. Oitenta e Quatro. Com o mesmo objectivo, mas uma variabilidade indiscernível – da força da impulsão, do equilíbrio no momento do salto, da direcção certa, das distracções com que o meio ambiente na sua aleatoriedade, e os nossos pensamentos na sua volatilidade, nos podem surpreender –, a garantia de uma precisão bem conseguida é conquistada durante o salto, com a adaptação infinitesimal de que o nosso corpo é capaz. E é isso que transportamos connosco, das garagens, para qualquer outro local. Oitenta e Cinco. Do exterior, são braços que se movem, com gestos característicos, mas sempre diferentes. Oitenta e Seis. Pernas que, primeiro, esticam, depois encolhem, depois esticam de novo. Oitenta e Sete. Todo um movimento, em cada fase repetido, em cada fase diferente de outro anterior. Oitenta e Oito. Do interior, são músculos que se dobram, ossos que vibram, matéria que é queimada na produção de energia que é consumida. Oitenta e Nove. Uma acção para cada reacção que, do exterior, é observável. Confiança conquistada pela aprendizagem do nosso comportamento perante a inquietante variabilidade de cada salto, dos recursos que temos, e que vamos ganhando com o treino, para lidar com ela. Noventa. Faltam dez precisões. Quem nunca fez já dez precisões de seguida? Noventa e Um. Noventa e Dois. Noventa e Três. Noventa e Quatro. Noventa e Cinco. Noventa e Seis. Noventa e Sete. Noventa e Oito. Noventa e Nove. E se caísse agora? Cem.
segunda-feira, 24 de março de 2008
Oleg-Gibão
Há algumas semanas, o seu vídeo surgiu da matriz. Foi colocado on-line e o impacto que causou foi notável, o espectro de opiniões era de uma gama vastíssima. Para uns era fenomenal, para outros excessivo, para alguns estava mal filmado, para essoutro uma obra de arte. Essencialmente foi controverso, não houve de todo unanimidade em relação ao trabalho deste traceur letão. O seu treino nas barras foi comparado a não mais do que uma excelente rotina de ginástica, longe das técnicas e dos princípios basilares do Parkour, isto porque o protagonista movimenta-se de uma forma que não seria útil numa situação em que é necessário fugir ou perseguir, para alguns o propósito fundamental desta disciplina. A pergunta impôs-se, incómoda e polémica. É Parkour? No seguimento desta surgiu naturalmente outra ainda mais controversa. O que é o Parkour? Não é o propósito deste artigo responder a nenhuma delas. A discussão seria longa, exaustiva e tremendamente inconclusiva, pretendo apenas transmitir uma opinião que é pessoal e que sinto necessidade de partilhar.
Alguns comentários iam ao encontro da ideia de que o movimento do Oleg, ainda que não fosse útil, era uma demonstração excepcional de força e agilidade, que documentava assim um excelente treino para o Parkour. Estavam no entanto muito longe de reconhecer a inclusão dos recursos usados por ele na disciplina propriamente dita. E estava assim feita uma distinção que eu acho muito interessante e cuja discussão considero bastante fértil – A distinção entre o acto de fazer Parkour e o treino para fazer Parkour. Já por mais do que uma vez li ou ouvi opiniões que manifestam de forma peremptória que o treino não é Parkour, que o processo da repetição, da tentativa e erro, da preparação física e mental não fazem parte do acto que é o Parkour propriamente dito. Esse, reserva-se àquele momento em que somos confrontados com a necessidade de agir para nos ajudarmos ou para ajudarmos os outros, o momento em que somos, numa palavra, úteis. Na minha opinião o Parkour é necessariamente tanto a prática como acto. Parkour significa “percurso” em sentido estrito, é certo, mas também em sentido lato. Representa o “caminho” com todos os seus significados, o caminho para chegar ao outro lado de uma sebe ou para subir a uma árvore mas também o caminho que o traceur escolhe percorrer até um determinado objectivo. Para uns é a capacidade de sobrevivência, para outros é a utilidade, para outros ainda é a natureza estética da disciplina e para alguns será por exemplo o sentimento de pertença a um mundo sistematicamente mais urbanizado. Se limitarmos o Parkour apenas ao momento em que somos postos à prova então, tal como alguém escreveu pelo meio desta discussão, em 99,9% da nossa vida não há Parkour e sobre isto eu não podia sentir mais desacordo. Para mim o percurso é trilhado a todo o instante, há Parkour quando estou a fugir de um prédio em chamas da mesma forma que há Parkour quando estou a fazer uma sessão do Air Alert.
Se o Oleg Vorslav fez ou não um vídeo de Parkour só ele poderá dizer. Apenas a sua opinião subjectiva é realmente importante para esta discussão pois só ele saberá o que significa brincar naquela estrutura e qual é o sentimento predominante quando o faz. Se esse sentimento for aproximado ao enlevo da descoberta de um lugar que já lá estava antes de o encontrarmos, ao entusiasmo no primeiro contacto com as superfícies, à procura solitária de possibilidades que só aquela disposição exacta permite e ao êxtase provocado pelo sucesso de um primeiro salto, então acho que podemos dizer que se trata de um sentimento com o qual todos os traceurs se conseguem relacionar e que eu considero ser aquilo que constitui a própria essência do Parkour.
Mas de uma coisa não tenho dúvida, o Oleg abriu portas e janelas onde nem paredes havia. As respostas que ele dá àquele espaço são tão inovadoras que só consigo descrever o que senti quando vi o vídeo através de uma palavra – incredulidade, simplesmente não queria acreditar... Nunca tinha visto alguém aproximar-se das qualidades simiescas que o Oleg demonstra. É como se um estado físico muito evoluído caminhe na direcção contrária ao da evolução, por mais paradoxal que isto possa parecer. Este vídeo parece demonstrar que um ser humano com capacidades físicas extraordinárias está, em termos cinestésicos, mais perto dos outros primatas do que outro com uma capacidade física regular.
Resta-me apenas sugerir a visualização do vídeo e esperar que a discussão se mantenha aberta com base nestas e noutras considerações.
http://www.youtube.com/watch?v=EFOPF_f90O0
segunda-feira, 17 de março de 2008
domingo, 9 de março de 2008
Uma via aberta
Há não muito tempo, ao passear pela blogoesfera, deparei-me com uma reflexão inesperada. Surpreendeu-me porque contraria, em certa medida, uma noção que estava e está ainda bastante bem sedimentada na minha forma de encarar o Parkour. Essa reflexão que encontrei prende-se com a forma como lidamos com um obstáculo que nos desafia e que leva ao limite as nossas capacidades. Temos um muro que queremos deixar para trás, qual é então a disposição mental certa para o fazer?
Na sua viagem a Tours o Blane (www.blane-parkour.blogspot.com) teve oportunidade de treinar com o traceur francês Thomas Couetdic (www.thomadventures.blogspot.com), que faz parte de um grupo muito restrito de pessoas que estiveram presentes quando o Parkour estava em ebulição. O Blane escreveu depois no seu blogue alguns apontamentos sobre esta viagem e foi essa publicação que despertou a minha surpresa e, em última análise, o próprio artigo que escrevo agora. Para além de uma descrição da viagem e da estadia em Tours o Blane dedica parte do seu texto a algumas reflexões sobre o método de treino e a forma como o Thomas o incentivava perante um obstáculo mais desafiante ou um salto mais arriscado, que mecanismos mentais eram operados de forma a conseguir os níveis de motivação e confiança necessários para ultrapassar o desafio. É nesta altura que o Blane diz que o Thomas ajudava-o a ficar zangado com o obstáculo e que esse era o mindset ou disposição mental adequados para o superar.
Esta expressão palpitou no meu entendimento - “ficar zangado com o obstáculo”... Alguma coisa não batia certo, a expressão não soava bem, não encaixava. Julguei que podia tratar-se de um mal entendido e escrevi um comentário no blogue solicitando um esclarecimento. Algum tempo depois lá surgiu a resposta confirmando o que eu temia – eu tinha percebido bem. Para o Blane, usar a frustração contra o obstáculo é perfeitamente natural, é até desejável.
Durante um treino, principalmente num dedicado à repetição, é normal surgirem sentimentos de frustração perante algum obstáculo que não conseguimos concretizar, o tal muro longo até perder de vista, por exemplo. Depois de repetir uma e outra vez e ainda mais outra sem resultados é normal sentirmos que a falta de paciência aumenta em proporção com o número de vezes que já tentámos. No extremo, quando a frustração toma conta de nós, pontapeamos o obstáculo, irritados com ele por não nos deixar passar. O que o Blane defende é que devemos canalizar essa frustração, e os elevados níveis de adrenalina daí resultantes, no sentido de enfrentarmos o obstáculo com fúria bastante até o deixarmos para trás ou se quisermos, até o vencermos.
É precisamente nesta ideia, nesta noção de vencer o obstáculo que eu não me revejo. Simplesmente porque não acho justo. Não acho justo para mim porque estou a deixar que emoções agressivas e destrutivas tomem conta do meu estado de espírito e acima de tudo não acho justo para o obstáculo. O muro longo até perder de vista é feito de pedra. É um colosso quando comparado com a fragilidade do nosso corpo. Não se trata de o vencer, trata-se de o aproveitar. Na sua presença eu sinto-me humildemente arrebatado pela indiferença que ele mostra perante as minhas investidas, eu sei que não posso nada contra ele. Respeito-o.
Ao compreender isto passei a olhar para este tipo de dificuldades com um ângulo diferente. Por um lado tento cultivar a paciência e a calma quando não estou a conseguir os resultados pretendidos, tento corrigir o que estou a fazer mal de uma forma sistemática e organizada olhando para dentro na procura das respostas certas e não para o obstáculo como a razão do meu fracasso. Por outro lado passei a achar a própria palavra “obstáculo” desadequada. O obstáculo é “tudo o que impede o caminho ou a passagem”. Ora, todos sabemos que o Parkour é precisamente a descoberta de caminhos e passagens onde antes não os havia, os objectos que escolhemos atravessar são os instrumentos necessários a essa descoberta, são os próprios caminhos e não os obstáculos, são as soluções e não os problemas.
A visão do Blane e do Thomas é de facto diferente. O Blane é um entusiasta da sobrevivência, tem no seu blogue links para sites dedicados a como sobreviver no mato e a como transformar água contaminada em água potável, como sobreviver num ambiente urbano em caso de catástrofe ambiental e coisas do género, muito interessante. Para ele o Parkour é mais uma ferramenta de sobrevivência (não será apenas isso certamente, não estaria a ser justo), serve para estar preparado para um futuro inesperado. O que ele diz é que numa situação em que tenhamos de recorrer às nossas técnicas para sobreviver, é muito provável que o espectro das emoções que nos vão assolar se situe no domínio da frustração, da raiva, fúria, etc. Neste sentido, num treino completo devemo-nos sujeitar a estas emoções de forma a conseguirmos controlar o nosso movimento e o nosso corpo numa situação limite. É claro que esta perspectiva não está errada, eu simplesmente vejo as coisas de forma diferente. Para mim o treino deve ser um momento de tranquilidade, de sossego emocional, é isso que eu tento procurar e é nesses momentos, às vezes raros, de verdadeira conciliação que eu me sinto em harmonia com o espaço, com o tempo e com o movimento.
É essa harmonia de que falo que permite transformar o obstáculo num caminho e o caminho numa via aberta para o outro lado.
sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008
O obstáculo agridoce
A escolha de uma alteração no hábito e no regime alimentar, em prol de um aumento da capacidade e resistência físicas, é um exemplo da influência mais forte na nossa vida que podemos receber da prática do Parkour. Alargar esta influência significará um aumento das vantagens, e sacrifícios, que esta actividade, muito mais do que apenas física, nos pode trazer. A vontade para explorar a totalidade destas vantagens é talvez a característica mais valiosa deste movimento que pode ser o Parkour, se o quisermos.
Fazer depender um dos mais caros hábitos, uma das mais importantes necessidades que temos, dos resultados conseguidos durante um treino é uma prova de que fazer Parkour não termina com o último alongamento. A adaptação física do nosso corpo a uma actividade tão exigente, como pode ser o Parkour, pode ser conseguida mais eficazmente, e, de certa maneira, só é plenamente conseguida, se formos capazes de regular criteriosamente o que acontece dentro do nosso corpo. A adaptação tem que ser conseguida através da reacção a estímulos externos, a atenção dada ao contacto do corpo com o mundo exterior, como fazer flexões ou abdominais, mas deve ser apoiada, reforçada, completada, pela reacção a estímulos internos, o estabelecimento de uma comunicação com a parte interior do nosso corpo. Saber ouvir o corpo e dialogar com ele parece trazer benefícios. Isto passa por, por exemplo, procurar apercebermo-nos das alterações biológicas e orgânicas face ao tipo de matéria-prima que damos ao nosso corpo para trabalhar, face ao que comemos. De certa maneira, não é muito diferente de quando nos apercebemos de que convém pararmos de treinar porque há uma certa dor, num sítio específico, que nos alerta para o excesso de esforço. Dir-se-ia que a dor é a forma que o nosso corpo tem de chamar mais a atenção, como o choro a plenos pulmões do bebé quando se sente aflito com alguma coisa. Porém, tal como um bebé pode estar a sentir-se só, aborrecido, melancólico, e não berrar, simplesmente ficar ensimesmado a um canto, também as pequenas alterações que ocorrem em nós, positivas ou negativas, nem sempre nos provocam dores. Elas parecem exigir uma atenção mais minuciosa, um entendimento das subtilezas dessas alterações, que muitas vezes é ignorado apenas porque tais alterações não trazem consequências tão visíveis como o aumento da massa muscular ou da capacidade de salto.
Penso que a maioria das pessoas reconhece facilmente que uma dieta saudável faz de alguém um traceur mais saudável. Tendo em vista que o corpo funciona como uma unidade, aquilo que é ingerido vai estar relacionado com o que conseguirmos fazer durante o treino. A escolha de uma dieta depende daquilo que procurarmos fazer com o nosso corpo. Por exemplo: Para o Parkour, o corpo deve ser o mais eficiente possível na gestão do seu peso. Por isso, a redução da gordura a um mínimo é uma forte ajuda para o treino. A massa muscular, ainda que essencial para tudo o que implique movimento, pesa também, mais até que a gordura acumulada. Ao reduzirmos a gordura acumulada, retiramos peso morto ao corpo, e, ao nos tornarmos mais leves, passamos a necessitar de menos força para conseguir as mesmas proezas durante o treino. Menos força significa menos massa muscular, ou seja, menos peso ainda. Com a força de que já dispomos, conseguimos saltar mais alto e mais longe, unicamente devido ao cuidado com os alimentos ricos em gordura. Como consequência, não precisamos tanto de perder treinos a melhorar a condição física e podemo-nos concentrar em treinos mais técnicos e, certamente, mais divertidos.
Esta alteração do hábito alimentar é um desafio, e há muitos factores, como o hábito ou a gula, que facilmente nos dissuadirão a aceitá-lo com parte integrante do nosso treino. Sermos capazes de percebermos os benefícios, de registarmos as alterações subtis, que por vezes são bastante evidentes, na nossa capacidade e no nosso bem-estar, funciona como um incentivo para uma mudança na dieta. De uma forma geral, parece haver uma primazia de sensações fortes na forma de vida das pessoas, actualmente. Esta é uma ideia de que nos apercebemos, o Bruno e eu, quando partilhávamos uma salada, depois de um treino. Ao conversarmos, demos conta do facto de a alimentação, na nossa sociedade actual, estar muito assente nos sabores fortes e carregados. Parece que os critérios da maioria da oferta e da procura alimentar são um número mínimo de sabores por refeição e um grande peso de cada um desses sabores. Neste aspecto, temos vindo a tornar-nos (ou sempre fomos?) cada vez menos subtis nas nossas escolhas e na avaliação que fazemos do que comemos. Conta mais o excesso de poucos alimentos do que a moderação de muitos. A obesidade é um indício desta atitude.
Se tomarmos em conta os grandes chefes de cozinha, vendo-os num qualquer programa de culinária, é fácil darmo-nos conta de um certo refinamento no seu paladar, uma sensibilidade gustativa de que a maioria das pessoas nem suspeita. Facilmente consigo imaginar que, para eles, a ideia de uma refeição traz consigo a riqueza de uma aventura no mundo dos sabores, em que o gosto rude e cru de um bife simplesmente temperado com sal e frito com margarina é mil vezes refinado, decomposto e explorado em direcções diversas e matizes variados, através da interacção com a infinidade de outros sabores à disposição na natureza. Uma alteração no hábito alimentar deve, talvez, por isso, ter de passar por uma conquista de uma certa ambição em querer embarcar numa aventura semelhante de cada vez que nos sentamos à mesa. Talvez isso implique aprendermos a cozinhar, conhecermos mais acerca dos muitos alimentos que há, das suas relações e dos segredos que os seus sabores conjugados encerram. Sobretudo, talvez nos ajude a alterarmos a nossa dieta mais facilmente, com um prazer genuíno até, e melhorarmos o nosso treino à custa de conhecermos novas facetas da nossa alimentação.
Suspeito de que esta sensibilidade na nossa alimentação está ligada com essoutra nas alterações mínimas que se produzem no nosso corpo, a que me referi acima. É algo como nos deixarmos invadir pelas coisas, no contacto que temos com elas. Como interagirmos fluidamente com todos estes aspectos do treino, como se nos juntássemos ao caudal de um rio que corre calmo. Algo como escutarmos, em silêncio, os ecos dos passos que vamos dando ao longo do percurso.